Da distância nórdica, tento encontrar maneiras de pensar o caos político brasileiro. Para organizar as ideias e sentir a complexidade da situação, acho útil pensar a sociedade em quatro esferas – política, mercado, sociedade civil e mídia.
Penso que a sociedade é um reflexo de como estas esferas interagem. Esse olhar por esferas não é muito animador, mas ajuda a pensar a situação além da polarização.
Ao olhar estas quatro esferas, é importante lembrar que elas não são isoladas como água e óleo. Ao contrário, elas se misturam, se influenciam e se transformam o tempo todo.
Outra questão é que as esferas não são homogêneas. Em cada uma delas há multidões de indivíduos com níveis diferentes de poder, de influência e de legitimidade na sociedade. O que o Sílvio Santos fala tem muito mais impacto, repercussão e legitimidade na sociedade do que a Dona Maria, por exemplo.
Uma terceira questão é que nenhuma das quatro esferas é imparcial. Todos aqueles que formam as esferas têm interesses próprios. Normal. Mas como há muitas pessoas envolvidas em cada esfera, acabam prevalecendo os interesses de quem tem mais poder. Em geral, ter mais poder significa ter mais dinheiro.
E como pensar essas esferas (política, mercado, mídia e sociedade civil) ajuda a entender o caos político do Brasil?
O problema, nesse caso, é que a interação entre elas é completamente sem equilíbrio. A sociedade civil – fragmentada e conflituosa em si – não tem força para exercer sua função diante da esfera política e do mercado.
Mas não é incoerente falar isso com tanto protesto acontecendo o tempo todo? Não.
Pense no que as esferas representariam numa situação ideal, por exemplo.
A “esfera política” define políticas públicas tanto com regras (leis que regem direitos e deveres) quanto com administracão do dinheiro público (o seu, o meu, o nosso imposto). Por essa dupla função, creio que a esfera política tenha que ter um pouco de sociólogos e um pouco de economistas. Tenham que ser um pouco socialistas e um pouco liberais.
O “mercado” (pensando aqui as grandes empresas nacionais e internacionais com poder de influência nos rumos políticos) contribui para o desenvolvimento econômico do país. Não por caridade ou por dever cívico, mas pelo interesse único em lucrar e aumentar sua própria riqueza. Nesse processo, movimenta a economia gerando empregos, facilitando o consumo, e pagando impostos.
A “sociedade civil” somos todos nós eleitores e empregados/empreendedores, pagadores de impostos e consumidores. Como somos muitos e temos muitos interesses diferentes, nos organizamos em associações, organizações, sindicatos, etc pra poder lutar coletivamente por aquilo que consideramos nossos interesses públicos e direitos.
A “mídia” (empresas privadas, públicas e estatais de informacão), no sentido jornalístico, é fundamental: ela gera informação sobre como cada uma dessas esferas operam. Imagina como seria saber sobre as decisões do congresso sem o noticiário? Nos dias de hoje, com tanta falsa informação online, a mídia, com seus códigos de ética, também ajuda a separar o verdadeiro do boato da net. Tem muita coisa boa e relevante circulando de forma independente online hoje em dia. Mas as empresas de comunicação ainda tem muita legitimidade. Muitos ainda acreditam que se algo está na TV é verdade.
Só que sem equilíbrio, a relação entre as quatro esferas é muito problemática. Vejamos os eventos em torno do impeachment (que está sendo votado agora no Senado), por exemplo.
Nossa esfera política atua pura e simplesmente com interesse de disputar e se manter no poder. A sociedade que se foda. Se for olhar bem, o discurso que prevalece nas falas dos políticos é o econômico de mercado ao invés do esforço de equilibrar as questões financeiras com desenvolvimento social.
Quer dizer, a maior preocupação da esfera política é com a saúde do mercado. Questões de bem-estar da populacão tendem a aparecer como paliativas, populistas e, no caso das mais sérias e permanentes, minoritárias. A mentalidade liberal-tecnocrática prevalece sobre a socialista-humanista ao invés de se equilibrarem.
Nesse contexto, a esfera política se esconde da responsabilidade de agir por uma sociedade menos desigual, transfere responsabilidades de gestão de recursos e serviços pro setor privado, e fica só com o mel: o dinheiro adquirido em impostos tanto do mercado quanto da sociedade civil. Pra que? Pra agir como já se agia no século XIX: se manter no poder com todos os privilégios que a posicão política lhes dá (inclusive de regrar seus próprios privilégios).
Pro mercado, tanto faz como tanto fez se a sociedade é desigual. O importante é lucrar. Aí jorram dinheiro em todos os políticos (vide Odebrecht) pra que nada prejudique seus lucros. Não existe preocupacão em acabar com a corrupcão e a burocratizacão da esfera política.
Pelo contrário. Ter acesso através de propina aos políticos que decidem é melhor do que ter transparência. Transparência demais atrapalha. Emperra. Pela lógica da competicão de mercado, ter acesso num sistema político corrupto é uma vantagem enorme.
Nessa situação surge o lobby do “pato amarelo” pra cortar benefícios (FGTS, Salário-Desemprego, etc), pra diminuir impostos da indústria, e por aí vai. Vai gerar mais emprego? Provavelmente. Mas não empregos que deem a sensacão de estabilidade pros trabalhadores, sobretudo os pobres. Lidar com riscos do mercado tendo ensino superior e qualificacão alta não parece tão assustador. Mas se coloca no lugar na maioria pouco estudada (sobretudo por falta de tempo) do povo brasileiro?
No caso da mídia, o problema é que no Brasil as empresas mais influentes de comunicacão naturalizam a ideia liberal-tecnocrática da sociedade. Ao mesmo tempo, criminalizam as ideiais socialistas-humanistas.
Boa é a esfera política que não atrapalha os negócios dos investidores. Ruim é a esfera política que sobrecarrega as contas do Estado com políticas que não viabilizam a producão e a saúde econômica. Não existe equilíbrio.
Aí você vê nos editoriais e na selecão das notícias uma cobertura muito mais favorável pra políticos de mentalidade liberal-tecnocrática (vistos como bons gestores e pragmáticos) do que pros socialistas-humanistas (vistos como utópicos ou doutrinadores de esquerda). Não se fala da importância de equilibrar os dois tipos de perfis, algo que seria bom pra sociedade. Prevalecem os que são bons pro mercado.
Aí entra a última esfera das quatro: a sociedade civil.
Talvez essa seja a mais problemática de todas. Historicamente, a sociedade civil brasileira sempre foi a mais fraca das quatro esferas. Primeiro, porque o Brasil é gigante em tamanho e diversidade. Assim, somos muitos indivíduos e grupos com interesses diferentes.
Além disso, temos um sério problema em termos de analfabetismo (absoluto e funcional). Não aprendemos na escola a pensar questões estruturais da sociedade. Matamos aulas “inúteis” como história e geografia. Lemos pouquíssimo sobre política no sentido amplo (além das picuinhas partidárias).
Nesse contexto, não discutimos política pensando na sociedade, mas olhando nossos próprios milhões de umbigos. A empatia nunca foi nosso forte. Votamos em quem “nos” gera emprego, em quem melhora “nosso” atendimento no hospital, a escola dos “nossos” filhos e por aí vai. Se temos condições de pagar por serviços privados, aí mesmo que deixamos o que é público de lado.
Pra piorar, o pensamento que prevalece entre a gente é o liberal-tecnocrata (ex. educacão boa é a que prepara pro mercado) junto com o religioso-militar (ex. o bom e o mal, o certo e o errado, o dentro-da-lei e o bandido-bom-é-o-morto). Em geral, seguimos nossos valores morais e religiosos pra pensar em como a sociedade deve funcionar.
Com essas características, nossa sociedade civil é mato seco pro fogo populista de direita e esquerda (vide Getúlio Vargas, os militares da Ditadura, o Lulinha Paz e Amor, e as bancadas Bala-Boi-Bíblia agora). O congresso mais conservador do período democrático não se auto-elegeu. O sucesso de militares sanguinários na política não é algo do além.
Se nossa esfera política age como agia há mais de 100 anos atrás e se o discurso mercadológico-meritocrático tem praticamente um poder soberano sobre o debate público é porque encontram respaldo – e pouquíssimo confronto – na sociedade civil.
A sociedade civil está, além de fragmentada como sempre foi, também cada vez mais conflituosa.
Partidos e organizações focadas no socialismo-humanismo necessário pra fortalecer o bem-estar social têm sido cada vez mais questionados por suas ideologias e suas ações ditas esquerdas-bolivarianas-comunistas (ou seja, como se fosse algo essencialmente ruim e anti-democrático).
Além disso, muitos trabalhadores assalariados e pobres não confiam ou se veem representados nos sindicatos. Muitos estudantes públicos não se se identificam ou respeitam organizacões estudantis.
Pra piorar, muitos defendem a lógica liberal-tecnocrata com unhas e dentes (e palavrões, deboches e afins) como se fosse algo neutro ou não ideológico. Essa desconfiança com a sociedade civil organizada mais socialista-humanista é reflexo da predominância da ideologia de mercado, naturalizada pelo populismo corrupto da esfera política, e também pela incapacidade desses grupos organizados de se comunicar de forma clara com as massas populares.
Ou seja, com isso tudo, minha expectativa pro futuro próximo do Brasil não é das melhores. Não vai haver o equilíbrio necessário entre liberalismo-tecnocracia e socialismo-humanismo nas esfera política e muito menos na sociedade civil. A mídia mais influente nada mais é – e vai continuar sendo – do que um megafone do mercado (do qual as empresas mais influentes de mídia do Brasil são parte).
A “reforma” que vai ter a partir dessa semana é a troca de governo e ponto. O sistema corrupto como está é bom pra quem vive de altos lucros (de novo, to falando das grandes empresas influentes politicamente, não do micro- ou meso-empreendedor), sobretudo se receberem a propina e não se meterem nos negócios. E pra piorar, os cães de guarda do Estado, sob aplausos de uma grande parte da população, vão continuar reprimindo (enquanto o noticiário deslegitima) as movimentacões populares que demandam mudanças sociais que gerem a diminuicão da desigualdade social no Brasil.
Enfim, não sei se esse textão faz sentido. Ele é basicamente uma tentativa de entender o quanto o buraco é muito mais embaixo e muito mais profundo do que o debate sobre o sai não-sai da Dilma nos deixa perceber.
Foto de Felipe Correia/Unsplash.